Por Kakay.
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”
Guimarães Rosa
Guimarães Rosa
A discussão sobre como confrontar a força das mentiras é, como diria lá em Minas Gerais, “mais velha que a Serra”. Em praticamente tudo na vida, temos que enfrentar uma questão, que é, no fundo, ética: como devemos nos posicionar em momentos graves. Em meio a dado embate, todos nós sabemos disso, a maneira com que você vai enfrentar a realidade é que vai definir, aos poucos, seu caráter e sua postura diante da vida.
Nas questões caseiras e mundanas que ocorriam nos pequenos grandes dramas familiares, era possível, em regra, identificar quem era quem. Numa simbólica briga interna familiar, sempre dava para ver quem optava por mentir, por fazer acordos espúrios de delação e por deixar que o medo superasse um esboço de honra que já começava a se definir. Quem tinha medo do chinelo, em casa, e da voz grave do Irmão Reitor, no colégio, muitas vezes usava o caminho mais fácil, ainda que obscuro e sombrio, para resolver os embates. Ali, naquele momento fugaz, já se instalava um vírus da traição, do vale tudo e da não opção por caminhos republicanos. O caráter não se molda em grandes cursos e universidades; no máximo ele se revela com o acúmulo de anos de fazer o que tem que ser feito.
Meu pai era um homem admirável. Não estudou, mas tinha uma postura perante a vida que ensinava a todos. Era essencialmente amado. E amava. Sem pejo e sem nenhum constrangimento. Abraçava e beijava os filhos e os sobrinhos com uma naturalidade que, à época, chamava a atenção dos outros. Não a nossa, pois fomos criados nessa incrível corrente de amizade, confiança, carinho e amor.
Tem um episódio que ocorreu no Colégio Maristas, em Patos de Minas, que mostra a dimensão da solidariedade que ele emprestava aos filhos. Certa vez, o poderoso Irmão Reitor resolveu me tratar com uma virulência inusitada. Reconheço que eu falava muito. Gostava de ouvir minha voz nas pequenas insurreições do colégio. Mas ele, um senhor enorme, resolveu me interpelar na frente de todos no colégio e, de dedo em riste, a um palmo do meu rosto, começou a gritar e a me destratar. Violento. Eu não tive dúvida: peguei o dedo, em riste, repita-se, e o quebrei na hora. Um grito de dor e de perplexidade ecoou forte. E, claro, o uso do poder: eu estava expulso do colégio! Esse era o desastre, eu perderia a minha bolsa tão duramente conquistada.
A minha aflição era a reação dos meus pais. Fui em casa e expliquei a eles. Minha mãe ficou preocupada com a bolsa que me permitiria estudar. Meu pai falou: “vamos ao colégio”. Chegando lá, fomos à Diretoria. O Irmão Reitor, com o braço na tipoia, não queria nos receber. Meu pai pegou minha mão e entramos na sala. Ele se levantou, um homem de 1.90, e eu, um menino de 12 anos. Meu pai disse a ele: “seu dedo foi quebrado, pois estava no rosto do meu filho. Um menino. Eu tenho a sua idade e estou aqui para lhe dar a oportunidade de colocar o outro dedo em meu rosto. O senhor verá minha reação e vai aprender a respeitar os meninos”. Silêncio absoluto. Um pedido de desculpas por parte do Reitor e a expulsão suspensa na hora.
Com o sofisticar das relações e a complexidade das informações, o uso da mentira, do engodo e da falsidade passou a ter um papel definitivo e ainda não totalmente entendido nas relações de poder. A extrema direita, em regra sem ética, sem escrúpulos e sem limites, redescobriu seu lugar no mundo do poder. Vale tudo. O uso deliberado das informações falsas, mentirosas, passou a ser uma estratégia de poder.
Na última semana, um vídeo inverídico sobre o PIX quase desestabilizou a parte econômica do governo. O número de visualizações alcançou milhões e milhões de desavisados. Sem nenhuma preocupação com a verdade, o que interessa é usar, sem absolutamente nenhum critério ético, mentiras, invenções, meias-verdades, maldades, enfim, no imenso lamaçal, que virou um grande esgoto, onde parte da ultra direita chafurda. E com pompas e galas.
Enquanto isso ocorre no Brasil, o rei da mentira toma posse outra vez na Presidência dos EUA. E com um discurso, que pegou, que o controle ético e a imposição de limites dessas ações criminosas seriam, na verdade, um crime contra a liberdade de expressão. Uma defesa deliberada do vale-tudo em um terreno no qual a falta de limites favorece os bárbaros e os inescrupulosos. E, pelo visto, não vai adiantar quebrar o dedo do reitor.
É bom lembrarmos do velho matuto Manoel de Barros: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Fonte: www.odia.ig.com.br