A crise e a fé

Padre João Medeiros Filho
No Seminário de São Pedro (em Natal), tivemos como professor de português Monsenhor José Alves Ferreira Landim, sacerdote alagoano, aqui trazido por Dom José Pereira Alves, terceiro bispo do Rio Grande do Norte. Nosso mestre da língua pátria gostava de recitar o poema “Vozes d´África”, de Castro Alves. Escandia os versos, ao declamar: “Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?”. Em 2006, diante do campo de concentração de Auschwitz, Bento XVI suspirou: “Onde estáveis, ó Deus?”. Teólogos do pós-guerra se perguntavam: “Como falar de Deus para quem presenciou Hiroshima, Nagasaki, Auschwitz e outras calamidades?”. Inegavelmente, a complexa situação (epidêmica e política) pela qual passa o Brasil atualmente poderá levar a um questionamento análogo. Implica em rever atitudes socioeconômicas, políticas, jurídicas, culturais e religiosas. A tradição judaico-cristã deverá repensar o sentido do silêncio de Deus diante das provações, superando discursos que interpretam a crise como castigo.
Na Polônia, o Papa emérito desabafou: “Neste lugar faltam palavras. O silêncio é um grito interior ao Onipotente: Senhor, por que calastes?”. O próprio Cristo no patíbulo da cruz exclamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22/21, 1) Falar de punição celestial não é teológico, mas desejo humano projetado sobre o Divino. Um Deus violento não é cristão. Só pode ser imaginado por quem desconhece o amor. É urgente também refletir sobre a exigência de milagres, tornando o Altíssimo à mercê dos desejos da humanidade. Ele não está obrigado às nossas vontades e caprichos, embora conceda tudo para o nosso bem.
Segundo o cristianismo, o Criador plasmou o homem e deu-lhe o livre arbítrio. Mas, a presença do Mal não deixa de ser uma interrogação constante. Deve-se, no entanto, lançar o olhar sobre a pessoa de Cristo. O silêncio do Pai não é apatia. Seu amor é real. A fé não livra o fiel do sofrimento, da provação e da dor. O próprio Jesus não foi poupado. Deus é empático com a humanidade, mas o seu tempo não é o mesmo dos homens, sua pedagogia não é a nossa. Seria pequeno demais, se fosse igual às criaturas mortais. “Os meus desígnios não são os vossos” (Is 55, 8). Por ser discreto, o Senhor age silenciosamente e inspira muitos a se empenharem na superação das crises. Faz-se presente naqueles que arriscam a vida para salvar os outros e na solidariedade dos que acenam com a esperança e rezam suplicando paz. A finitude e a impotência ensinam que ninguém nasceu para sofrer, mas a dor faz crescer.
Como conseguir crer em tempos de crise? Não há respostas prontas, pois existem situações inusitadas. É preciso considerar as diferentes inquietações de cada um. Seria incoerente uma fé que não se deixasse tocar pela dor. Esta pode ser uma ocasião para descobrir o que é essencial na crença e purificar suas expressões mais tacanhas. Crer não significa ver tudo claro ou provado cientificamente. Não isenta de dúvidas e questionamentos. Consiste em saber, primordialmente, que o ser humano é limitado e não tem explicações para tudo. Entretanto, quem acredita, deseja compreender. “Creio para compreender e compreendo para crer”, dissera Santo Agostinho.
O termo crer etimologicamente provém do indo-europeu (“kerd+dhê”), significando segurar no pai. A fé é a certeza de que Deus nos sustenta e fortalece. Não nos traz soluções pré-fabricadas. Mas, transmite-nos luz, paz e ânimo, capazes de orientar o rumo da vida. Não estaremos sós. “Quem Nele crer jamais será decepcionado” (Rm 10, 11). “Não vos abandonarei” (Jo 14, 15), assevera o Senhor. Acreditar pode nos libertar da tristeza, do desatino etc., abrindo um horizonte de esperança singular. Quem crê, saberá pedir graças, mas deve ter consciência de que não pode manipular Deus. A fé dá-nos forças para enfrentar os revezes da vida com realismo e paciência. Deus não se obriga, mas em sua liberalidade concede aquilo de que seus filhos necessitam. Ela é a certeza da misericórdia divina. A quem está sofrendo, lembramos as palavras de alento do Apocalipse “Ele [Deus] enxugará toda lágrima dos olhos… não haverá mais luto, nem dor, porque as coisas de antes passaram” (Ap 21, 4).