Em tudo na vida, é importante a gente saber a hora de agir. Ou, pelo menos, saber cobrar posições quando a decisão não depende de nós. No meu escritório, somos 6 advogados. Optei por uma estrutura enxuta, na qual tudo passa por mim e por todos. Temos um costume, já de longa data de, pelo menos uma ou duas vezes por ano, fazermos uma viagem juntos. Só a gente: Paris, Lisboa, Courchevel, Montevidéu, Puntadel. Este, enfim, estamos sempre em algum canto do mundo.
Certa vez, estávamos em Paris, no meu apartamento, e uma advogada acordou muito mal. Parecia que ia morrer. Tentamos o seguro saúde da American Express, que havia sido comprado para a viagem, e nada. Falei várias vezes com a mesma atendente e nada deles disponibilizarem um médico. À tarde, consegui um médico amigo e logo ela estava curada. Era mais ressaca. No outro dia, no final da manhã, liga a assistente do seguro saúde. Quando ela começou a falar que tinha conseguido um médico, eu a interrompi: “minha colega faleceu nesta noite e estamos tratando do traslado do corpo!”. Perplexidade e choro do outro lado da linha. E ainda emendei: “vou processar a empresa e a senhora” e bati o telefone. Ela ligou várias vezes. Não atendi. Era tarde demais. Havia passado da hora.
Ou seja, em todas as questões, das bucólicas às muito sérias, é preciso que a gente esteja apto a nos posicionar. Por esse motivo, assisti, entre perplexo e incrédulo, à discussão sobre parte do governo apoiar a anistia para os envolvidos em 8 de janeiro. Por motivos diversos, tive que ouvir pessoas que respeito defenderem que é melhor anistiar, pois assim fica mais fácil o Lula tentar a reeleição. O Bolsonaro seria carta fora do baralho e, por isso, o melhor adversário.
Além de uma pregação sobre anistiar os que foram condenados, mas não tiveram tanta responsabilidade. Ora, até onde sei, quem decide sobre a responsabilidade criminal é, no caso, o plenário do Supremo Tribunal Federal. E não estamos tratando de um caso qualquer, comezinho. O que houve foi uma tentativa de golpe de Estado. De subversão da ordem constitucional. De ruptura institucional.
Houvesse dado certo, nós não estaríamos aqui escrevendo artigos e dando palpites sobre anistia. Se a Ditadura tivesse sido instalada, será que o ex-presidente Bolsonaro estaria falando em perdão? Em pacificação nacional? E os militares, generais e outros, que urdiram a trama, iriam topar apoiar eleições livres e conviver com os que eles tentaram tirar a fórceps da vida pública? E os financiadores, que certamente tinham objetivo de lucrar com o golpe, iriam abrir mão das negociatas pelas quais toparam colocar dinheiro para sustentar o movimento golpista? Enfim, a história é escrita por quem vence. Se fossem os que ousaram o golpe, qual seria o local reservado para os que perderam, no caso, nós?
O tema anistia virou moeda de troca. Vale na disputa à presidência da Câmara, vale na composição de um possível novo ministério e vale até como motivo emocional -veja o ridículo apelo feito por Bolsonaro ao Lula para que ele encabece um movimento pela anistia. É tanta desfaçatez que as pessoas nem ficam coradas.
Ameaçam ministros do Supremo, afrontam as instituições, depredam as sedes dos Três Poderes, tentam resistir e tomar o Poder por não aceitarem o resultado das urnas e ensaiam um golpe com sustentação econômica, militar e política. Quando são derrotados, querem fazer parecer que não era sério. Que era só um treino, uma brincadeira. E ainda encontram advogados para defender que não houve golpe, no máximo uma tentativa. Ora, tivesse vingado o golpe nós é que estaríamos sendo julgados, presos, exilados ou mortos. O crime é esse mesmo: tentativa de golpe, pois se o golpe ocorre, não há crime, há mudança da ordem institucional e quem ganha escreve o que deve ser seguido.
Daí a importância da fala do ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, que, no dia 31 de outubro, disse estar indignado com a proposta e afirmou que o perdão aos crimes seria “uma agressão à população brasileira”. E, técnico, afirmou o que deve ser um mantra entre nós democratas: uma anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro e pelos movimentos que prepararam o golpe é inconstitucional.
Não tenhamos dúvidas de que qualquer projeto que se apresente tímido, com uma roupagem de anistiar os “pobres coitados” que serviram de bucha de canhão, no fundo, serve para anistiar os que ainda sequer foram denunciados. O objetivo final é favorecer os generais e outros militares graduados, os políticos que participaram da trama, os financiadores que sustentaram o movimento visando lucro e, claro, o ex-presidente Bolsonaro e seu bando mais próximo. Nenhum deles moveria um dedo para anistiar somente os que já foram presos e condenados. É tudo uma grosseira encenação.
A única parte que pode nos sensibilizar é apoiar, vigorosamente, os processos contra o grupo ainda não denunciado. Vamos esperar que sejam logo processados e, com o uso constitucional da ampla defesa, sejam condenados. Aí depois, já presos, eles voltam ao tema da anistia. Afinal, a anistia atinge todos os efeitos penais decorrentes da prática do crime. Logo, se Bolsonaro e sua turma alegam que não houve tentativa de golpe, que nada mais aconteceu do que um passeio na Praça dos Três Poderes, que não houve crime, tanto que sequer foram denunciados pelo procurador-geral da República, porque é mesmo que o tema da anistia entrou em pauta?
Remeto-me ao poeta Torquato Neto, no poema Cogito:
“eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
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