“FLITABIRA: UMA FLOR NASCEU NA RUA, ROMPEU O ASFALTO”, POR KAKAY

Em um momento denso e doloroso, com as bombas em Gaza matando, indistinta e covardemente, crianças, mulheres, idosos, jornalistas e médicos, a crueza da guerra provocou certo colapso em boa parte das pessoas que teimam em trazer dentro delas algum vestígio de humanidade. É muito difícil acompanhar esse verdadeiro massacre sabendo que, infelizmente, nada podemos fazer de efetivo para o cessar-fogo.

A ordem de destruição já foi dada e não há nenhum organismo internacional, ou país, que tenha força e credibilidade para se impor. Nem sequer corredores humanitários, ou a retirada de civis da área do genocídio, ou mesmo uma trégua nos bombardeios para tentar a diminuição da matança desenfreada; nada, absolutamente nada, parece falar aos corações dos senhores da guerra. Ódio. Vingança. Poder. Dinheiro.

Reconheço que, em época de mídia 24 horas, as imagens, especialmente as de crianças dilaceradas e mortas em valas comuns, causam uma desestrutura emocional que abala nossa confiança na humanidade. Se eu, que estou em casa e posso desligar a TV quando acho que o barulho dos mísseis já passou dos limites, sinto esse desconforto, imagine a mãe ou o pai que estão com os filhos já sem vida nos braços ou soterrados. Sem contar a fome, a falta de água e a ausência de assistência médica e humanitária.

Pense nos efeitos deletérios eternos nessas crianças que estão vendo a morte ser banalizada, mas que têm que se esconder das bombas reais que caem como aquela chuva de prata dos fogos de artifício no réveillon de Copacabana. Só que, lá em Gaza, os brilhos dos mísseis que iluminam a noite significam um encontro com a dor, com a destruição e com a morte quando o clarão toca o chão.

De tanto acompanhar essa tragédia ao vivo, ainda que pela TV e pelos grupos de whatsapp, sinto um profundo incômodo com a imobilidade covarde que parece nos manter reféns da perplexidade e da completa inoperância. Como se não bastasse a ausência de qualquer ação, ainda resolvi fugir. Saí do mundo do dia a dia insano, onde as notícias parecem correr atrás de nós, e refugiei-me no Festival Literário de Itabira.

“Arte, Literatura e Correspondências” em homenagem aos 121 anos de nascimento do itabirano Carlos Drummond de Andrade. De quebra, o festival foi palco da entrega do troféu Juca Pato para a maravilhosa Conceição Evaristo. Sob a batuta do mágico Afonso Borges, dividimos palcos com grandes escritores, poetas, violeiros e sonhadores iluministas. Permitimo-nos mergulhar nas conversas digitalizadas de Drummond com o maior artista brasileiro, Cândido Portinari, que também era um grande poeta. A tecnologia e a inteligência humana conseguiram fazer Drummond conversar com Portinari, mas não conseguem um diálogo para colocar um fim na guerra.

O clima de emoção e de cumplicidade, que nos acolheu a todos nesses intensos dias, parecia vir além do sentimento do mundo que era compartilhado e da paixão pela literatura que nos unia. Era tal a alegria que contagiava e abraçava a todos, que pude sentir como se uma nuvem densa nos embalasse, protegesse-nos e nos acariciasse. Uma poesia solta no ar, quase palpável, e sorrisos incontidos, como se lá fora não houvesse guerra.

Dançamos todos no ritmo cadenciado, sensual e irresistível de Eliana Alves, Lívia Sant’Anna Vaz e Conceição Evaristo. E, ainda, embalamo-nos no Festival de Viola Caipira. Por alguns dias, não escutei o barulho das bombas e vivenciei uma resistência poética. Foi lá que Krenak sentenciou que o planeta Terra é nosso domicílio e que Jeferson Tenório debateu o exílio e a escravidão.

Talvez, a tristeza e a dor, nossas companheiras nos últimos tempos, tenham sido o tempero para tanta emoção e acolhimento. Saio de Itabira revigorado e levando comigo cada momento de puro carinho, até de amor mesmo, para fortalecer o enfrentamento da barbárie. E com profunda perplexidade e tristeza por não entender como é possível viver a magia de um festival literário, como o de Itabira, enquanto tanta gente se dedica ao culto da morte.

A poesia, a literatura, a arte, a música e a amizade continuam sendo nosso último refúgio. Ainda com Drummond, no poema Canção de Berço:

“Também a vida é sem importância.

Os homens não me repetem nem eu me prolongo até eles. A vida é tênue, tênue.

O grito mais alto ainda é suspiro,

os oceanos calaram-se há muito.”

Fonte:flitabira.com.br