Das profissões jurídicas, muito provavelmente a mais relevante é a do juiz. Afinal, como dizia o mestre Arruda Alvim (em “Manual de direito processual civil”, vol. 1, RT, 1994), “a elaboração legislativa, as cogitações puramente acadêmicas, os livros de doutrina, os livros de comentários de leis, o ensino da disciplina, tudo, em suma, dirige-se ao processo como meio, e quem diz a última palavra sobre tudo são os tribunais”. Assim, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (em “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, Saraiva, 2016), “pede-se consciência do magistrado na medida em que é ele a última palavra acerca da lei, devendo, portanto, prestar a atividade jurisdicional como sendo o último recurso de que dispõe o cidadão na defesa de seus direitos e garantias, no combate à arbitrariedade, à deslealdade, à inadimplência, ao desvio de poder, enfim, à ilegalidade e à inconstitucionalidade”.
Vamos então ao cinema, para ilustrar a ética do juiz, analisando o filme “O julgamento de Nuremberg” (1961), direção de Stanley Kramer (1913-2001), estrelado por Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Judy Garland, Montgomery Clift, Richard Widmark, Maximilian Schell, Werner Klemperer e William Shatner, entre outros. Melhor elenco não há!
Moralmente, o filme foca naquilo que uma das personagens chama de “crimes cometidos em nome do direito”. É certo, como afirma a defesa, que “um juiz não faz as leis; ele aplica as leis do seu país”? Ou devem os juízes sempre ter em conta um direito superior, a Justiça em si?
A resposta nos é sugerida pelo anti-herói do filme, Ernst Janning (papel de Burt Lancaster), aquele jurista que, segundo é dito no filme, havia “dedicado sua vida à Justiça – ao conceito de Justiça”. Janning acaba aceitando sua responsabilidade pelos graves erros do regime nazista, reconhecendo que tanto ele como os corréus sabiam que as pessoas que eles sentenciavam eram enviadas a campos de concentração. O próprio Janning, tomando o lugar do seu advogado (papel de Maximilian Schell), vem a reconhecer a sua responsabilidade no “Caso Feldenstein”, que já estaria decidido, pela “lei” nazista, antes mesmo da abertura dos debates. “Aquilo não foi um processo”, dirá Janning, “foi um rito de sacrifício”. No final, a resposta é complementada por um outro magistrado, o herói do filme, o presidente da Corte no caso do “julgamento dos juízes”, o juiz Dan Haywood (papel de Spencer Tracy), apresentado como um homem modesto, tolerante e justo, que quer entender como os sábios magistrados da Alemanha puderam participar dos horrores do regime nazista e, se for o caso, punir adequadamente esses “crimes judiciais” praticados “em nome da lei”. Num encontro entre herói e anti-herói, afirma a personagem de Spencer Tracy: “sua culpa [e a dos juízes nazistas como um todo] teve início na primeira vez que você condenou conscientemente um inocente”.
Se estamos tratando, em “O julgamento de Nuremberg”, dos mais graves crimes contra a humanidade, posso achar em Honoré de Balzac (1799-1850), em “A interdição” (1839), uma ética do juiz mais pé no chão, do nosso dia a dia. “A interdição” é um texto seminal. Um romance curto e denso, em que o autor retrata as realidades do quotidiano e do foro. A sua trama gira em torno da busca da Marquesa d’Espard para interditar o seu marido, de quem vive separada há anos. Seria o Marquês um louco pródigo, que impede uma mãe de ver os filhos e desperdiça a fortuna? Ou seria a Marquesa uma mulher inescrupulosa, disposta a qualquer coisa?
Diz-se que, em Balzac, o juiz é um centro da sociedade, que é cheia de contradições. E que Balzac teve o seu modelo de magistrado íntegro no juiz Popinot, talvez o mais “investigado” dos juristas balzaquianos, que José Antônio Aguirre, em “Escritores y procesos: casos reales y ficcionales del proceso penal” (Ediciones Didot, 2012), poeticamente define como “a ficção de um juiz real”. O autor retratou “este magistrado como um homem de altíssimos valores, severo, equânime, fiel à sua função judicial e de uma decência inquebrantável”. Mas, embora possuidor de numerosas virtudes, o juiz Popinot tem também defeitos (quem não tem?). O principal, embora não venal, é a sua ingenuidade. E a intromissão desse defeito nas suas qualidades faz desse juiz “uma personagem real, verossímil e crível”. Mas se temos o juiz Popinot, “pleno de modéstia e grandeza, homem justo e humilhado”, em “A interdição” também encontramos o “flexível Camusot”, o juiz de instrução “destinado a uma carreira brilhante”. É para decidir isso que são encarregados o “íntegro” juiz Popinot e o “flexível” juiz Camusot. Resultado?
As personagens de Balzac são tiradas ou postas – depende de olharmos pelo ângulo da inspiração ou da criação – de/em fiéis “cenas da vida jurídica” (inclusive citando decisões reais de cortes francesas). E, sem crise de consciência, digo mais nada.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL