O que de humano resta em nós?

Quando fiz 50 anos, resolvi me dar um presente especial. Contratei uma professora de literatura, em Belo Horizonte, e pedi a ela para fazer uma pesquisa nos sebos da cidade anotando todos os livros de poesia que encontrasse. Ela catalogou mais de 600 títulos e eu escolhi 500 para mim.

A festa foi um espetáculo, o pessoal do Museu da Língua Portuguesa fez uma tenda enorme na qual o mote era a poesia. Logo na entrada, o convidado tinha a oportunidade de assoprar em um cano do qual saiam palavras, como que por encanto, formando poemas nas paredes. Uma magia pura com direito a muita declamação.

A poesia tem me acompanhado e, nestes tempos estranhos de mísseis, de dor, de ataques indiscriminados a civis e de balas perdidas e erradas, de certa forma, ela é um dique para não transbordarmos. Ou uma pá para recolher os nossos escombros. Durante a pandemia, na solidão e na angústia do isolamento, resolvi recitar poesias todo final de tarde. Criei uma brincadeira lúdica: poesia ao cair da tarde. Comecei mandando para umas 10 pessoas. Gravei todos os dias, durante mais de 2 anos, e acabei mandando para mais de 1.000 pessoas diariamente. Faz um bem danado saber que eu tenho a poesia como companheira.

Essa guerra estúpida, entre Israel e Palestina, mexeu com todos nós. Na verdade, o mundo faz de conta que não vê as mortes diárias na grande e monstruosa prisão a céu aberto que virou a Faixa de Gaza. As vidas minguando sem acesso à energia, à água potável, à saúde e à comida.

Quem anda pelas ruas das grandes cidades brasileiras já se acostumou com os 260 mil brasileiros sem teto, sem abrigo e sem esperança. Fora as 33 milhões de pessoas que passam fome no país. O centro de São Paulo, à noite, é de cortar o coração. É impossível fingir que é normal e que essa guerra, também a céu aberto, está dominando o Brasil. A indiferença mata. E somos todos, de alguma maneira, responsáveis por essa tragédia humana.

Para suportar a morte diária do que de humano ainda sobra em cada um de nós, é preciso ter, cada um à sua maneira, nossos escapes, nossas fugas e nossos delírios. Nessa semana, em Lisboa, uma surpresa me fez sair desse imobilismo acachapante. Um amigo querido, que tem um apartamento com vista para a Sé e para o Tejo, resolveu inaugurar uma biblioteca luso-brasileira com direito a placa tendo meu nome. Uma biblioteca criada em minha homenagem é uma maneira de respirar e de resistir. A primeira edição do “Livro do Desassossego” está lá, olhando para mim.

“Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.”

–Fernando Pessoa

E é nessa viagem poética que eu me seguro e me amparo. Por alguns momentos, entre recitações, música e vinho, a guerra deixa de existir para os poetas. Todos sabemos que, lá fora, a morte e a fome continuam a vencer, mas a fuga faz o tempo dar uma parada. É como se gravássemos ao nosso redor um círculo imaginário de giz.

A nos esconder, a nos proteger e a nos agasalhar. Uma covardia, eu sei. Mas uma densa nuvem fecha os nossos olhos e nos cega. Como se, ao longe, a poesia nos pegasse pelas mãos e nos fizesse dançar uma valsa imaginária. E, como bailarinos trôpegos, nós criássemos um mundo só nosso de paz e harmonia.

A poesia serve, também, para que nós não sucumbamos definitivamente. Podem ser falsos esses momentos, mas sem eles seria ainda mais difícil viver. De mãos dadas com a poesia, a gente segue tentando não enlouquecer de vez.

O esquecimento do extermínio faz parte do extermínio.”

–Jean-Luc Godard

Fonte: poder 360