Vivemos em uma sociedade autoritária e isso pode ser constatado em inúmeros exemplos no nosso cotidiano. Como seria impossível elencar tantos abusos que permeiam o dia a dia, penso que dois casos de grande apelo midiático, e em áreas sensíveis, podem nos levar à reflexão. O primeiro seria no Judiciário, esse poder patrimonialista, conservador e machista que, paradoxalmente, foi a sustentação da nossa estabilidade democrática na tentativa de golpe de Estado. O segundo, no seio das faculdades de medicina, que são, tradicionalmente, o curso de maior prestígio nas universidades, com a mais alta faixa de corte nos vestibulares e, em regra, frequentado pela elite brasileira. Estudar medicina em uma escola privada custa verdadeira fortuna.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, foi cúmplice leal das irregularidades cometidas pela famigerada Operação Lava Jato. O ex-juiz Sérgio Moro e seus procuradores amestrados tinham a segurança de romper todos os ritos possíveis. Agiam em afrontosa e criminosa ilegalidade corrompendo, na visão do Supremo Tribunal Federal, o sistema de Justiça, pois contavam com o auxílio luxuoso do TRF-4. Anos de abusos em nome de um projeto de poder.
Curioso notar que, tão logo o Dr. Eduardo Appio, um magistrado sério, independente e corajoso, assumiu a 13ª Vara Federal de Curitiba, aquela que era a do todo poderoso Sérgio Moro, o sistema tratou de se unir contra qualquer hipótese de apuração e moralização da podridão instalada. Com rara ousadia, em ação coordenada pelo atual senador Moro, principal interessado na ausência de investigação, o Tribunal Regional
afastou sumariamente o novo juiz da sua jurisdição, inclusive, proibindo-o de entrar fisicamente na Vara. Algo absolutamente incompreensível e inaceitável.
Um magistrado, que tem a seu favor o princípio constitucional da inamovibilidade, foi afastado sem ser sequer intimado, sem direito a conhecer a acusação, sem defesa, sem contraditório ou presunção de inocência. Um estupro contra o Judiciário e contra as garantias constitucionais. É o poder se unindo e repelindo qualquer hipótese de investigação interna.
Sim, tudo se deu quando o Dr. Appio começou a ter acesso às enormes falcatruas que ocorriam naquela Vara e com repercussão, talvez, nos Tribunais. O que seria esperado era um apoio incondicional ao juiz que estava, por dever de ofício, levantando os possíveis crimes e desmandos. Para perplexidade geral, ele continua afastado da 13ª Vara.
Outro fato digno de reflexão foi a expulsão sumária, sem o mínimo direito de defesa e de contraditório, em clara ofensa ao prestigiado princípio da presunção de inocência, dos calouros de uma faculdade de medicina. Interessante registrar que, em 22 de fevereiro 1999, um trote absurdo, covarde e brutal causou a morte de um estudante de medicina dentro da USP. Edison Tsung Chi, com 22 anos, havia acabado de entrar na universidade. Uma brincadeira macabra entre veteranos e calouros ceifou sua vida e destruiu seus sonhos.
Urge frisar que, todos os anos, as humilhações, muitas vezes criminosas, se repetem nas faculdades sob, no mais das vezes, o silêncio cúmplice dos docentes e dos alunos veteranos como um todo. As cenas que levaram à expulsão devem ser objeto de investigação, claro. Mas não de execução sumária, como se a direção, alguns professores e antigos alunos, médicos inclusive, quisessem dar um cala-boca à sociedade perplexa com o que foi captado pelas imagens que viralizaram. Muito mais uma política de defesa do que uma discussão séria, como seria esperado em um ambiente universitário.
Há notícia de alunos que foram expulsos sem sequer estarem no local do trote. Registre-se que a ação foi vulgar, banal e com potencialidade criminosa. Porém, há, quase certamente, mais abuso e arbitrariedade por parte da instituição de ensino em aplicar a pena capital do meio acadêmico – a expulsão – sem cumprir as garantias constitucionais. Entrar no curso de medicina é projeto de uma vida. Expulsar um calouro sem averiguar a fundo o ocorrido é muito mais grave do que as cenas desprezíveis que foram divulgadas.
É necessário perguntar: onde será que chegaria uma investigação detalhada da responsabilidade dos atos de vandalismo? Quem os planejou? Houve uma coação efetiva sobre os calouros sobre o trote? Há quanto tempo isso ocorre nas barbas e com o silêncio, ou com o apoio, ainda que implícito, dos diretores, professores e veteranos das faculdades? Precisamos identificar quais são os educadores que se divertiam com as humilhações. Quem são os alunos veteranos que organizam, há anos, os trotes bárbaros? Quantos médicos já em exercício sabiam, e até incentivavam, em nome de um “costume acadêmico”?
Essas são algumas das questões que precisam ser respondidas e que só virão à tona com um processo democrático de investigação. Com o respeito à ampla defesa e com a produção da prova defensiva. É o que se espera. Curioso que, no caso dos alunos, a Justiça Federal já determinou a reintegração, por ofensa ao contraditório; mas o Dr. Appio ainda continua afastado do cargo.
Reporto-me ao mestre Pessoa, no Livro do Desassossego: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vomito para aliviar a vontade de vomitar”.
Fonte: o dia