“O CHILE HOJE É COMO A SUÍÇA”, contou Paulo Guedes ao Financial Times, em fevereiro, depois de exaltar os “Chicago boys”que ajudaram o facínora Pinochet a implantar uma economia de mercado durante uma ditadura que reprimiu violentamente direitos civis e sociais.
Oito meses depois dessa entrevista, as ruas da Suíça latino-americana de Paulo Guedes explodiram depois que o governo anunciou um aumento da tarifa do metrô. Foi a gota d’água para uma população endividada, que tem que pagar caro por educação, saúde e no final da vida receber uma merreca de aposentadoria. São os sacrifícios aos quais os Chicago Boys submeteram a população chilena para o mercado poder desfilar e virar o fetiche neoliberal no continente.
As privatizações desenfreadas e o corte de gastos em serviços públicos essenciais melhoraram os números da dívida pública, do PIB e da renda per capita. Apesar desses bons números, o Chile segue entre os países mais desiguais do continente mais desigual do mundo. Mas, como sabemos, essa não é uma preocupação dos ultraliberais. Pelo contrário, é um efeito colateral aceitável que a mão invisível do mercado acabará resolvendo (spoiler: nunca resolve).
Esses indicadores excitam os homens do mercado, que enxergam o mundo através de planilhas do Excel. No mundo real, muitos chilenos têm que escolher entre lavar roupa e tomar banho porque não têm grana para pagar a água privatizada. Mas na planilha de Paulo Guedes, a Suíça latino-americana continua bombando!
O saldo dos protestos até agora foi de 19 mortos e quase 3 mil prisões, números assustadores que fariam os liberais brasileiros surtarem se tivessem ocorrido na Venezuela de Maduro. Mas como essa é a explosão de uma bomba-relógio armada pelo ultraliberalismo da ditadura de Pinochet — e que não foi desarmada por nenhum governo anterior ao de Piñera, como apontou Maurício Brumpara o Intercept —, a direita no Brasil ou se refugia no silêncio, como Paulo Guedes, ou faz como Bolsonaro e lança mão do seu super trunfo: jogar a culpa na esquerda.
Há ainda os que gostam de comparar os indicadores chilenos com os brasileiros, como se a convulsão social ocorrida no Chile fosse em virtude do cansaço do povo por viver num país maravilhoso. Nas planilhas, Santiago continua parecendo Zurique. Acontece que qualquer comparação absoluta entre indicadores do Chile com os do Brasil é estúpida. Primeiro porque a população chilena é menor que a metade da do estado de São Paulo. Segundo porque o estado chileno, desidratado pelo ultraliberalismo, não tem os mesmos gastos que o brasileiro com sistema de saúde, de educação e diversos programas sociais. Fica fácil ostentar dívida pública baixa e crescimento do PIB, enquanto a maioria da população sofre sem conseguir pagar por serviços básicos e caros.
A receita chilena de liberdade total à economia somada ao fim de programas e direitos sociais é exatamente a mesma que o bolsonarismo quer implantar no Brasil.
A reforma da previdência brasileira por pouco não seguiu o modelo de capitalização do Chile, que fez com que nove em cada dez aposentados chilenos receba menos de 60% de um salário mínimo, que é de US$ 450 — uma merreca para os mais velhos que ainda precisam pagar caro por serviços de saúde. Além do Chile, Peru, México e Colômbia estão revendo os seus sistemas previdenciários de capitalização, mas Paulo Guedes ainda não desistiu de implantar o modelo no Brasil.
Enquanto a violência corria solta nas ruas do Chile, Bolsonaro anunciava na China que está para sair um novo plano de Paulo Guedes para combater o desemprego. “Os trabalhadores querem menos direitos e mais trabalho”, disse o presidente pouco antes de se encontrar com o presidente comunista chinês. A lógica ultraliberal de cortar direitos para dar leveza aos mercados está sendo reproduzida em todos os setores do país. O nosso Chicago boy está mesmo empenhado em fazer do Brasil uma nova Suíça.
Os tarados pelo ultraliberalismo chileno até pouco tempo veneravam o país vizinho. O ex-banqueiro João Amoêdo, o CEO do partido mais fiel aos projetos bolsonaristas no Congresso, foi ao Twitter no mês passado contar porque o Chile virou um paraíso de bem-estar, riqueza e prosperidade. Assim como Guedes, exaltou as reformas liberais de Pinochet, a responsabilidade fiscal do governo, a agilidade para se abrir novas empresas e outros sensos comuns da velha cartilha liberal.
Percebam o delírio do ultraliberal brasileiro. Um mês antes dos pobres e da classe média saírem às ruas destruindo bancos e botando fogo no metrô porque não conseguem pagar as contas, o ricaço brasileiro exaltava o sucesso das políticas ultraliberais chilenas. Do ponto de visto dos ricos, é verdade, o Chile é um pedacinho da Europa na América do Sul. E não é novidade para ninguém que João Amoêdo só trabalha com o ponto de vista dos ricos.
Quando Sebastián Piñera foi eleito em 2017, o partido Novo comemorou o “fim da social-democracia” e desejou o mesmo para o Brasil. Os sonhos da sigla se realizaram: Bolsonaro e seus Chicago boys estão no poder e contam com o apoio político do Novo para seguir os passos chilenos. A combinação entre um governo autoritário e uma economia 100% livre parece ser mesmo o sonho de qualquer ultraliberal.
Quando a realidade se impôs e atropelou a Suíça das planilhas, Piñera se viu obrigado a reconhecer os problemas sociais que levaram o país ao caos: “É verdade que os problemas se acumulavam há décadas e que os vários governos não foram – nem nós fomos – capazes de reconhecer essa situação em toda sua magnitude. Reconheço e peço perdão por essa falta de visão”.
Além do mea culpa, o presidente liberal apresentou uma série de medidas para contornar a crise. Todas essas medidas, vejam só que ironia, são típicas de um governo social-democrata: reajuste imediato de 20% nas pensões de aposentadorias e nos benefícios sociais, criação de um seguro-saúde, criação de benefícios para trabalhadores de baixa renda, aumento de imposto para os mais ricos, revogação do aumento das tarifas de energia.
Os liberais brasileiros estão dispostos a continuar seguindo o fracassado receituário chileno. Um fracasso admitido até mesmo pelo presidente liberal do Chile. A mesma bomba-relógio já está instalada no Brasil. A reforma da previdência, os cortes em serviços fundamentais como saúde e educação, os cortes em programas sociais, tudo isso é uma crueldade sem tamanho com quem apenas sobrevive no Brasil. Mas Paulo Guedes e sua turma têm um compromisso com as elites e não vão parar.
Na mesma entrevista em que comparou o Chile à Suíça, o ministro disse que as “pessoas de esquerda têm miolo mole e bom coração”. E completou: “as pessoas de direita têm a cabeça mais dura e…o coração não tão bom”. Bom, a comparação estapafúrdia entre os dois países e o colapso social chileno mostraram que Guedes está errado: a direita ultraliberal não tem nem cabeça nem coração.