Rita Lee: amor é prosa, sexo é poesia

Quando eu era menino, lá no interior de Minas Gerais, a vida corria lenta e modorrenta como os córregos de água barrenta onde a gente pescava bagres e piabas. Não havia muito o que fazer, salvo viver. Sem televisão, sem celular e sem internet. Na fazenda, sem luz elétrica, a gente exercitava a convivência, a conversa fácil e as brincadeiras de rua. Para fazer um interurbano, era necessário solicitá-lo à telefonista pela manhã e ir para a sede da telefônica à tarde esperar a ligação ser completada.

Na literatura, especialmente na poesia, que conseguíamos viajar. O mundo nos era apresentado por escrito e, através dos poetas, conhecíamos além dos limites da minha Patos de Minas. Lembro-me de conhecer o mar aos 13 anos e do espanto existencial que senti ao deparar-me com aquele mundo d’água. Era fácil ser feliz e a gente sabia.

Uma vez por semana, tinha uma festa no Patos Social Clube, a “hora dançante”. O clube chique da cidade. Todo mundo vendo todo mundo. Era uma sala pequena e, para chamar uma menina para dançar, tinha que ter muita confiança. Todos acompanhavam. Se ela refugasse, a cidade inteira saberia. Penso que foi ali que eu peguei segurança para falar em público e para assumir a tribuna do Plenário do Supremo Tribunal. Aquela adrenalina de atravessar a pista e convidar a menina forjou, de maneira indelével, o homem que eu virei.

A gente achava o máximo o globo que levava as luzes (disco ball) para todos os cantos do pequeno salão, que julgávamos enorme. Voltei lá, anos depois, e custei a crer que era naquele espaço mínimo que nós nos sentíamos donos do mundo. Não havia, na nossa imaginação, nenhum clube em Paris que pudesse competir com aquele ambiente mágico. A cidade só tinha um prédio, o Alvorada, com 6 andares e o único elevador. As duas pessoas mais importantes eram os porteiros do Clube Social e do Edifício Alvorada. Andar de elevador era sinal de status.

Certa vez, quis impressionar uma menina linda, de São Paulo, que passava férias por lá. Ela não gostava de poesia e recitar era o meu único charme. Sem carro e sem grana, tinha que ser criativo. Convenci o porteiro a deixá-la subir comigo até o 6º andar de elevador. “Será fatal e irresistível”, pensei. Quando entramos e eu fechei a porta pantográfica, notei que ela não estava impressionada. Fiz a pergunta que deveria ter feito antes: “Você mora em casa ou apartamento.” E ela, “Apartamento”. Gelei, “Qual andar?”, ela foi cruel, “27º”. A sorte é que o elevador era lento e deu tempo de pensar em uma história para encantá-la mostrando a vista da cidade. Acabou dando certo. Afinal, como nos ensinou Rita Lee: “Sexo é imaginação, fantasia. Amor é prosa. Sexo é poesia”.

 

Em toda “hora dançante”, havia um conjunto que tocava. O melhor era “Os Asteroides”, cujo cantor, Cláudio, tinha uma voz linda. Ele sempre começava a noite e, às vezes, acabava com uma música que nos levava a sonhar: “Dizem que sou louco por pensar assim. Se eu sou muito louco por eu ser feliz. Mas louco é quem me diz. E não é feliz, eu sou feliz”.

A gente entoava juntos a plenos pulmões. A cidade não tinha nenhum psiquiatra e a juventude gritando no clube que era feliz! Era lindo. Rita Lee curava a todos nós.

Depois ela continuou conosco, vida afora, falando de querer ser índio pintado de verde, cheirando lança perfume, afrontando a caretice e dizendo que era bom fazer a companheira ficar louca, muito louca dentro dela. Toda leveza da insubordinação que nos fazia sair da mesmice e admirar aquelas ousadias que faziam um bem danado para quem achava que, ao contrário do que ela cantava, o melhor era “ser o normal”. E até mesmo nos levar a acreditar que “eu posso pensar que Deus sou eu”. Só de fazer o questionamento sobre o que era ser “normal”, já valeram as sessões de análise que mais tarde me levariam a Éric Laurent em Paris.

Por isso, escrevo para dizer: obrigado, Rita Lee! O tempo passou, vieram a internet, o telefone celular, as televisões 24 horas, a política, o trabalho, os casamentos, os filhos e eu quase tinha me esquecido que te amava tanto.

Homenageando você, “meu sonho é ser imortal, meu amor”. Você é.

Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tem 65 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros. Escreve para o Poder360 às sextas-feiras.

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