Padre João Medeiros Filho
Nos idos de 1950, quando estudávamos no Seminário de São Pedro (Natal), tínhamos entre os formadores Padre Manuel Barbosa de Vasconcelos Filho. À época, era também docente da Escola de Serviço Social e capelão da Polícia Militar do RN. Fomos seu acólito nas missas dominicais celebradas na Igreja de São Judas Tadeu e na antiga Casa de Detenção (atual Centro de Turismo). Homem erudito, incentivava em seus alunos o saudável hábito da leitura, tanto de textos religiosos como profanos. Emprestava-nos livros e periódicos de sua biblioteca. Vêm à nossa mente Seleções do Reader´s Digest com a seção: Enriqueça o seu vocabulário, primando pelo ensino da sinonímia. Por conta dessa revista, adquirimos o hábitoliterário do emprego de várias palavras com sentidoanálogo, visando à comunicação mais compreensível.
Hoje, a crise (sociopolítica, econômica, ética e religiosa) assola a sociedade brasileira. Ela vemdesencadeando uma abundância de eufemismos, dignos de causar surpresa a qualquer dicionarista ou filólogo. Imaginemos Antônio Houaiss, Antenor Nascentes eAugusto Magne, diante de modismos dúbios, frutos da criatividade terminológica. Empregam-se neologismos, baseando-se em termos existentes com significados diferentes, aprendidos em linguagem coloquial ou no uso da norma culta do idioma pátrio. Não se trata simplesmente de crítica. Nosso objetivo é tão somentefazer refletir, ao destacar o aspecto semântico subjacentena crise, que vem produzindo um vocabulário peculiar. Este surpreende como a polêmica gerada pela reforma ortográfica adotada pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Os verbetes, empregados com novos sentidos e conotações, quando dicionarizados, poderão ajudar algum estudioso na análise da realidade brasileira destas duas últimas décadas, partindo dahermenêutica literária.
No mundo político, o estelionato eleitoral, o secular engodo, as velhas mentiras deslavadas (promessas que nunca serão cumpridas) adquiriram o status eufêmico de “metáfora de campanha” ou “licença poética de palanque”.Observemos as nuances em certos vocábulos utilizados em língua nacional ou estrangeira: conta bancária secreta em paraísos fiscais passou a ser chamada de “offshore”. A tradicional propina virou “pixuleco”. O consagrado superfaturamento vestiu a roupagem de “comissão administrativa”. Temos lido na recente terminologia que a formação de quadrilha passou a ser elegantemente denominada de “aliança entre partidos”. Criou-se uma nomenclatura oficial para financiamento de campanhaeleitoral, agora intitulado de fundo partidário (um apoderamento planejado e legalizado, aprovado pelos parlamentares), sucessor credenciado do postulado franciscano: “é dando que se recebe” ou do clássico “tomalá, dá cá”. Há bem mais. Mas, os distintos e prezados leitores sabem que esta não é a nossa especialidade.
À cada acusação, eivada de provas nos inquéritos e processos, o indiciado instruído pelos seus defensores deverá responder: “não passam de puras ilações”. A evidência passou a ser chamada desse modo e a conivência a ter esse sentido. A repudiada “deduragem” de nossos tempos de internato (onde a lealdade e a honestidade eram cultuadas) agora recebe o epíteto de “delação ou colaboração premiada”, revestida do requintedos procedimentos jurídicos e das garantias legais. “O tempora, o mores!” (Ó tempos, ó costumes), exclamou o tribuno romano Marco Túlio Cícero. Antoine de Saint-Exupéry, há oitenta anos, afirmava que “a linguagem é uma fonte de mal-entendidos.”
Não podemos esquecer que “dar calote” foi batizado graciosamente de “pedalada”. Se os cidadãos comuns e contribuintes usassem desse expediente para os seus impostos e taxas, como ficariam as finanças públicas? Anotem-se para dicionarização algumas expressõesneológicas, adquirindo outra semântica: passear de avião por conta do erário (leia-se contribuinte) é “viagem de interesse público”. E ainda: assalto ao bolso do cidadão é “ajuste fiscal”. Roubo escancarado passou a ser “aumento patrimonial e de renda, a partir de investimentos externos”. Contrabandista tomou a acepção de “executivo de fronteiras”. Não esqueçamos: Medida Provisória é “ferrada certa e urgente nos cidadãos”. E “silêncio dos líderes”, inclusive religiosos, é contributo à paz e à democracia! Nosso espaço nesta coluna é limitado, portanto torna-se inviável comentar o “despiora”, “descondena” e tantos outros étimos criados por motivações políticas e ideológicas. Lembremo-nos do ensinamento do apóstolo Paulo: “Digo-vos isto para que ninguém vos iluda com discursos falazes” (Col 2, 4).