A virtude da gratuidade

Padre João Medeiros Filho

“De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10, 8), recomendou Cristo a seus discípulos. O Mestre desaprovaa exorbitância do interesse, utilitarismo e descarte. A gratuidade é uma virtude essencial. No entanto, muitos consideram-na atitude insólita. Reconhecer a suaimportância, parece algo bizarro nos ambientes políticos,marcados pela lógica do “toma lá, dá cá”.  Não faz tantotempo, nos salões palacianos, consagrava-se o jargão: “é dando que se recebe, deturpando inescrupulosa e maliciosamente as palavras da oração atribuída a São Francisco de Assis. A ausência dessa virtude desencadeia a espiral das desigualdades, impedindo o surgimento de um novo ciclo para a humanidade. Constata-se o distanciamento da sociedade atual das ações orientadas por esse atributo humano e cristão. se tornou lugar comum falar do crescente derramamento de notícias e narrativas falsas na mídia e nas redes sociais. Sãoinverdades propagadas em larga escala para fragilizar e desmoralizar pessoas, incitar ódio e, assim, de modo pernicioso e imoral, gerar vantagens para osdisseminadores e aqueles que levianamente os orientam.Passou-se a coroar: sua majestade, a sordidez. 

A gratuidade é determinante para desenvolver o altruísmo, que ilumina a alma e fecunda a inteligência. “Há mais felicidade em dar do que em receber”, proclamou Jesus, em Atos dos Apóstolos (At 20, 35).Apesar de ser uma qualidade fundamental, ela vai se afastando do mundo hodierno e do seu papel de estímulono coração humano. Em certos meios sociais, chega-se ao extremo de se pensar que agir gratuitamente é sinônimo de ingenuidade ou parvoice. Equivocadamente, muitosconsideram “virtude” o oposto: manipular tudo em troca de algum ganho pessoal ou conveniência. Essa perspectiva egoísta torna-se permissiva para a conquista de benesses.

A escassez da gratuidade alimenta patologias, tornando as pessoas dominadas por forças sedutoras e hegemônicas, levando ao individualismo e à ganância. É impressionante o avanço do egocentrismo nos hábitos da civilização contemporânea. As relações são orientadas ouestabelecidas a partir de um jogo de interesses. Assim,determinados indivíduos e situações são reduzidos a instrumentos para obtenção do objetivo. Um exemplo: muitos filhos não conseguem cuidar mais dos pais idosos e fragilizados. Alguns alegam uma série de motivos e compromissos. No fundo, talvez não queiram perdertempo e ter preocupações. Carecem do sentido da gratidão e desprendimento. Vive-se no império do utilitarismo e do descartável. Gestos magnânimos são necessários entre amigos. Quantas vezes, entende-se por amizade, a possibilidade de se poder obter benefícios. Se ela édesprovida de solidariedade não conseguirá despertar alento e esperança, trazer luz e alegria ao viver de muitos. O mundo de hoje tenta sepultar a generosidade, ensinada por Cristo, com suas palavras e exemplos.

O problema ecológico, que está se tornando cada vez mais grave, é fruto do descaso do homem pela mãe-natureza, que oferece tudo gratuitamente. Os resultadosdesse desrespeito são agressões a seres vivos e tudo que nos circunda. Dádiva do Criador, ela é indubitavelmentepródiga e espera-se apenas o reconhecimento dahumanidade pela sua doação. A extração desordenada de minérios, focada no lucro e na idolatria do dinheiro, é deletéria. Tem-se verificado que esse tipo de empreendimento causa tragédias, cenários desoladores e mortes.

É preciso reavivar e cultivar o sentimento da gratuidade. Sem ela, a humanidade aumentará a escaladade contrastes e indiferença, comprovando que não adiantaalguns terem os bolsos cheios, enquanto a maioria vive na miséria. Esse quadro conduz ao fracasso do ser humano.Até a vivência religiosa sofre desvios, sendo marcada, por vezes, de um jogo quase comercial. Os fiéis esperam, em retorno à sua crença, favores e graças. Entretanto, Deus nos doa tudo, nada exigindo em troca. A gratuidade é importante na pauta das práticas necessárias para reconstruir a sociedade. O Evangelho apresenta elementoscapazes de levar os seres humanos a redescobrir riquezas indispensáveis. Entre elas, está a valorização da generosidade, que é a expressão do amor do Onipotente pelos homens. É importante relembrar o ensinamento doapóstolo Paulo: “Que cada um dê sem medir. Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 6-7).