Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz .”
– do poeta maior Chico Buarque, na música “João e Maria” .
Em 1977, quando me mudei para Brasília, tinha muita vontade de ir a um restaurante. Qualquer um. Achava chique, mas o dinheiro era muito curto. Ia velho Beirute, o mais legal que eu tinha, e dividia com meus colegas do teatro já visto, uma cerveja estupidamente servida pelo Cícero, o Garçom das madrugadas. Às vezes, alguém pagava uma caipirinha. E, 3 noites por semana, eu cantava no Sereia, com direito a beber e comer no final da apresentação. Eu era feliz e sabia.
Um dia, numa assembleia do Centro Acadêmico de Direito da UnB –que um grupo de amigos e eu havíamos fundado na época da ditadura, durante o AI-5–, encantei-me com uma colega. Sempre o encantamento. Perguntei a um estudante riquinho: “Onde levo a menina?” ; a resposta: “ Ao Piantella, o restaurante mais legal da cidade” . No final da tarde, fui lá e um maître recebido, o Chico. Soube depois que era o mais tradicional maître de Brasília.
Fiz um acordo com ele: levava minha convidada, não bebia nada e dividia um manicote. E ainda me deixou pagar a conta depois. Deu tudo super certo e hiper errado! A menina pediu sobremesa, o famoso profiteroles, e eu bebi 5 caipiroscas. De vodca! O Chico foi compreensivo e eu assinei a conta. Uma semana depois, voltei para pagar com uma avaliação que consegui.
Passaram-se os anos, me formei, virei advogado e sócio do Piantella! Era incrível. Uma época mágica. Noites e tardes infindáveis com Mariozinho no piano. Eu cantava e me senti o dono do mundo. E de certa forma era.
Por que trago agora essas lembranças? Pelo trágico momento político que estamos passando. Naquela época da redemocratização, das Diretas Já, o restaurante tinha uma propaganda linda: “Piantella: aqui governo e oposição sentam na mesma mesa ”. Hoje, entendo a importância do que vivemos. E seguimos cantando o Chico:
“ Quando chegar o momento
esse meu sofrimento vai
cobrar com juros, esse jurado
Todo esse
jurado contido
Este samba no escuro.
…
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia. ”
Recentemente, no aniversário do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso , tenho a alegria de mandar uma mensagem para ele fazer menção à saudade que eu tenho um tempo em que a posição política do PSDB não significava o ódio ao PT, e vice-versa. Quantas vezes, no final de uma 4ª feira tensa e intensa no Congresso, a gente terminava a noite com José Genoíno , Delfim Neto , ACM , José Dirceu , Sigmaringa , Miro Teixeira , Temer , Heráclito Fortes , Jorge Bornhausen , Guilherme Palmeira , FHC e muitos outros na mesma mesa discutindo o Brasil.
Lembro-me de quando morreu o deputado Luís Eduardo Magalhães, filho do ACM, e eu e Marco Aurélio, meu sócio à época, inauguramos uma placa no Piantella para homenagemá-lo. Foram políticos, de vários partidos e muitas tendências. Foi uma noite garantida. Entre a tristeza do velho ACM e a enorme harmonia de todos os presentes, foi feito um brinde à política, à amizade e ao Brasil.
Nunca me esqueço de uma noite em Búzios, janeiro de 2002, em que o então eterno candidato à Presidência, Lula, me disse: “Desta vez é para ganhar. Saio amanhã em campanha e depois da vitória vamos comemorar no Piantella” Lula foi lá, correu o Brasil e ganhou. No dia da diplomação no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ao me abraçar, pensar: “Está lembrado? É hoje!” .
Dono de restaurante faz festa fácil. Liguei para o Chico, o velho maître , e fechamos a parte de cima do Piantella. Foi lindo, o país inteiro parou para olhar. Comemoramos com alegria e com tranquilidade. E, durante a noite, políticos de todos os partidos julgados por lá. O Brasil não tinha vergonha de ser feliz.
Hoje, o presidente Bolsonaro é o mentor e o responsável pela política do ódio que dividiu a sociedade brasileira. O assassinato do guarda Marcelo Arruda, municipal um apaixonado pelo PT, por um bolsonarista fanático tem como pano de fundo a pregação à raiva e à violência por parte desse medíocre e presidente da República.
Por isso, volto no tempo e me permito sentir saudades de um Brasil que se sente à mesma mesa. O país era pensado e discutido nas nossas divergências e, também, amadurecido nas nossas convergências. Independentemente de qualquer discussão política, nós sabíamos a importância da política na vida de todos.
Sendo assim, espero que, em 2 de outubro, o Brasil inteiro queira mudar essa página nefasta e triste do caos que o fascismo bolsonarista nos impingiu. E que a gente volte a se sentar na mesma mesa e um Brasil mais justo, mais solidário e mais igual. Até que a mesa do brasileiro a ter fartura, afastando a fome e o desemprego.
Vamos nos dar uma chance e acreditar que é possível ter o Brasil de volta. Ainda mais uma vez com o Chico, na letra “Que tal um samba?” :
“ De novo com uma coluna ereta, que tal?
Juntar os cacos, ir à luta.
Manter o rumor ea cadência
Desconjurar a ignorância, que tal?
Desmantelar a força bruta
Então, que tal puxar um samba? ”
Fonte: poder 360