Impasses na democracia

Nesses tempos de desagregação política, líderes cheios de si apostam no conflito e no impasse como forma de impor sua vontade, inconformados com a resistência propiciada pelos canais da democracia. Donald Trump recorreu ao estado de emergência para impor seu caprichoso e inútil desejo de construir um muro na fronteira com o México. Sofreu duas derrotas com voto de Republicanos. A Câmara de maioria Democrata e o Senado de maioria Republicana aprovaram resolução anulando sua decisão de usar poderes de emergência para financiar o muro que o Congresso lhe negara. Contrariado, vetou a resolução. Vai escalar o conflito e pode, eventualmente, ter seu veto rejeitado, o que só é possível com maior número de votos contra de seu partido. Difícil, mas possível.

 

No Reino Unido, Theresa May, nunca aceitou a rejeição de seu acordo para a Brexit. Sofreu três derrotas seguidas. Agarrada ao cargo, recusa-se a renunciar e obteve o direito de apresentar sua proposta pela terceira vez. Os analistas concordam que ela tem riscos para a economia britânica. Provavelmente será novamente rejeitada. James Corbyn orientou o Partido Trabalhista a abster-se de votar, para ajudar os Conservadores a derrubar um novo referendo proposto pelo grupo independente, formado por defecções de Trabalhistas e Conservadores. Corbyn, como May, joga no impasse. A primeira-ministra aposta que sua teimosa insistência terminará por convencer a maioria a bancar seu projeto por duas vezes rejeitado. É mais um blefe que qualquer coisa. Corbyn colabora para o bloqueio decisório na esperança de que desague em novas eleições e maioria para os trabalhistas. May teme as eleições que Corbyn deseja. Na anterior, que ela mesma antecipou a buscar um mandato forte para conduzir a Brexit, saiu mais fraca. Corbyn ilude-se com as pesquisas que indicam ter apoio popular para ganhar. As pesquisas, nessas conjunturas nebulosas, podem enganar. Enquanto o impasse político se agrava, a economia do Reino Unido patina e seu peso geopolítico definha.

Nos Estados Unidos, o impasse político estimula a competição no partido Democrata. São muitos a querer enfrentar Trump no ano que vem. Os três candidatos mais conhecidos são o ex-vice de Obama, Joe Biden, e os senadores Elizabeth Warren e Bernie Sanders. Mas, o querido atual da mídia é o ex-deputado Beto O’Rourke, que anunciou sua candidatura. Ele perdeu a eleição para o senado para o republicano Ted Cruz, mas não desanimou. Ao contrário, continuou fazendo comícios e reuniões em escolas, universidades e locais públicos, reunindo multidões. Sua popularidade cresceu depois das eleições, o que o animou a inscrever-se nas primárias do partido. Trump está cada vez mais isolado, confinado ao grupo sectário do partido Republicano, de ideias extremadas, que não lhe garante a eleição. A queda de braço permanente com o Congresso, irrita os republicanos moderados e pode levá-lo a uma derrota eleitoral tão histórica quanto sua eleição.

Todos aproveitam falhas inevitáveis dos respectivos modelos políticos. Theresa May se aproveita da faculdade de manter-se no poder, mesmo perdendo a maioria em votações cruciais para o destino do Reino Unido. Evita um voto formal de confiança, que a derrubaria, e agarra-se ao poder por meio de todos os expedientes a seu dispor. É uma particularidade contemporânea do modelo inglês, que enfraquece um dos mecanismos mais eficazes do parlamentarismo para romper impasses, a perda do mandato associada a derrotas relevantes no parlamento. Recusa-se a convocar eleições, outro recurso do sistema parlamentarista de resolução de conflitos e paralisia governamental.

May e Corbyn estão comprometendo o interesse coletivo em nome de interesses políticos pessoais e partidários. A melhor saída para o dilema da saída seria um novo referendo. A Brexit seria muito provavelmente rejeitada e o Reino Unido reconquistaria prestígio e influência suficientes para participar da deliberação sobre a necessária reforma institucional da União Europeia. A institucionalidade da Europa é insuficiente para lidar com os desafios e dilemas que ela enfrenta. Será preciso rediscutir o papel do parlamento europeu, da estrutura de regulação macroeconômica, comercial e de imigração entre países-membros. Discussões inevitáveis, que eventualmente levarão, em algum momento futuro, a decisões que afetariam diretamente o Reino Unido. Fora da UE, Londres sofrerá as consequências sem poder participar dos debates e do processo decisório.

Trump usou expedientes legais que aumentaram os poderes constitucionais originais da Presidência. Parte da reação republicana tem a ver com o risco de uma Presidência cada vez mais autocrática, pela usurpação de poderes do Legislativo. Mitt Romney, um dos senadores que votou contra Trump, usou exatamente o desequilíbrio decorrente de poderes como justificativa para seu voto contra. Foi um voto pela Constituição, ele disse, e pelo equilíbrio de poderes que é seu ponto central. Não foi um voto sobre Trump. Para o senador, dar ao Executivo o poder de anular uma lei aprovada pelo Congresso equivaleria a torna-lo a última instância de poder, imune ao sistema de freios e contrapesos. Trump dobrou a aposta e usou o poder de veto. A derrubada de vetos presidenciais é rara nos Estados Unidos e o voto que rejeitou a medida presidencial, 59 a 41, é insuficiente para derrubar o veto. Serão precisos 2/3 dos votos dos senadores presentes. No caso de casa cheia, seriam 63 votos. Até agora apenas um senador que votou com Trump anunciou que recusará o veto. Menos de 10% dos vetos presidenciais foram derrubados nos EUA. Mas, as derrubadas ocorrem. George W. Bush teve quatro vetos rejeitados, de 12. Obama, apenas um recusado, também de 12 vetos. Trump dependerá crucialmente do apoio do senador Mitch McConnell, líder Republicano no Senado. Ele confronta o Congresso em questões menores, por caprichos pessoais. Os impasses que tem criado já provocaram o fechamento do governo e grande prejuízo ao país e aos cidadãos americanos.

Em suma, não existe modelo político democrático que não tenha suas disfuncionalidades e que não possa ser manipulado por governantes com tendências autocráticas e mentalidades autoritárias. Como não existe um estágio final de democracia. Democracia é um alvo móvel, que pede aperfeiçoamento e aprofundamento recorrentes, num processo sujeito a avanços e retrocessos.

 

G1

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