Padre João Medeiros Filho
Em sua infância, Clarice Lispector, de origem ucraniano-judaica, aportou no nordeste do Brasil e aqui ficou. Começou a escrever despretensiosamente por pura inspiração. Vem se tornando objeto de inúmeros estudos universitários e não acadêmicos. Muito se tem dito sobre essa artista da palavra. A linguística e a literatura estudam-na sob vários enfoques. Clarice buscou uma linguagem especial para expressar o estado da alma, utilizando o monólogo e a análise psicológica. Por isso, é considerada uma escritora intimista. A filosofia perpassa pela sua obra. Ultimamente, a teologia tem se voltado para o seu pensamento e legado literário. Há uma percepção teológica de que ela é uma apaixonada pelo mistério de Deus. Seus escritos, especialmente “Paixão segundo G. H.” – que consoante estudiosos parece ser uma metáfora romanceada – desvelam uma intimidade com o Transcendente. Seus leitores e críticos, por vezes, ficam perplexos com a verve espiritualizante de alguns textos.
Quem a conheceu de perto declara se tratar de uma mística no pensar, viver e escrever. Talvez, ela não concordasse com tal afirmação. Porém, o leitor é levado a concluir dessa maneira, quando lê os seus textos. Neles transpiram espiritualidade e busca do Eterno. Santo Tomás de Aquino denomina “Cognitio Dei experimentalis” (conhecimento experimental de Deus). Para Jacques Maritain é “a experiência do Absoluto.” Cabe salientar que os ucranianos são dotados de profunda religiosidade, professando a fé judaico-cristã, por meio de ritos cristãos orientais de tradição bizantina ou pelo culto nas sinagogas. Exemplo dessa espiritualidade é a existência de duas dioceses (eparquias), contando mais de trezentos mil ucranianos (e descendentes), nas cidades de Curitiba e Prudentópolis (PR).
Na leitura atenta da “Paixão segundo G. H.” – denominada por certos pesquisadores de “Paixão do Gênero Humano” – verifica-se o itinerário de despojamento interior que deságua na comunhão com o Transcendente. Há no desenrolar de seus escritos um arrebatamento interior, digno de Teresa d’Ávila e João da Cruz. É patente o processo ascético e purificador, que prepara o seu íntimo, modificando sua concepção do mundo e da vida. Nesse processo existe permanentemente a “mão invisível que me sustenta”, como escreveu, referindo-se a G.H. Esta já não depende mais de si mesma, mas daquele braço que a segura. Assim, suplica: “Ah, não retires de mim a tua mão.” Parece o brado do salmista: “Levanta-te, Senhor, ergue a tua mão e não te esqueças dos que sofrem” (Sl 10/9B, 12). Em determinado momento, acontece o percurso em direção ao Deus que a chamava.
Clarice coloca nos lábios de seu personagem estas palavras, que são uma confissão da alma: “Eu estava em pleno seio de uma indiferença que era quieta…, de um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim.” Aqui, poder-se-ia encontrar análoga angústia interior que queimava o coração e as entranhas de Agostinho. No meio da luta e provação, da busca e do pranto, sente que a misericórdia divina vem socorrê-la. “E no soluço veio a mim o Deus que me ocupa toda agora.” Ele penetrou em seu âmago e ela sentiu – como o Bispo de Hipona – que Deus não estava distante, mas dentro dela. Nos relatos metafóricos do romance de Clarice, inicia-se o diálogo entre o Criador e aquela que O procurava.
Nos textos claricianos percebe-se claramente sua sensibilidade espiritual e suas raízes judaicas, que esperam pelo Senhor, à semelhança do salmista: “Das profundezas, Senhor, eu clamo a Ti, escuta a minha voz” (Sl 130/129). É o mesmo sentimento de Moisés, ao perceber a inebriante presença de Javé, diante da sarça ardente, no Monte Horeb, como consta do Livro do Êxodo (Ex, 3, 1 ss). Lispector encontrou, através da palavra escrita, o rosto do Todo-Poderoso, que tanto buscava ao longo de sua vida. E, paulatinamente, Ele se revela em seu mistério jamais totalmente desvelado. Na ucraniana-brasileira confirmam-se a veracidade e a força daquilo que proclama o salmista: “Em Ti eu confiei, não ficarei envergonhado.” (Sl 25/24, 1-2). O contato com a escritora poderá nos ensinar a desviar da onda que banaliza o Divino e a descobrir cotidianamente as manifestações do Mistério inefável de Deus. “Tenho a Ti, Senhor, nada mais quero sobre a terra” (Sl 73/72, 25).